Eu e minha mamãe linda na peça Shakuntalá, 1997
Uma vez eu perguntei a minha mãe porque ela não ia ao cemitério visitar seu pai, que morreu quando ela tinha apenas 21 anos. Ela me respondeu que era porque o pai dela não estava lá: lá só havia uma caixa de ossos debaixo da terra. Por isso, quando ela queria homenagear o pai, fazia o que ele mais gostava: ia ao teatro, ao cinema, dançava, lia, ouvia música. Mas eu era muito pequena para entender o significado disso tudo.
Hoje eu a compreendo como nunca. Minha mãe não está lá, naquele bauzinho de cinzas porque ela não cabe num bauzinho de cinzas. Não cabe nessa sala, nesse quarto, muito menos naquele caixão. Minha mãe não é matéria, é um amor enorme que eu nutro em mim, é algo muito grande para ser confinado numa caixa de madeira.
Por isso, quando eu também quero me lembrar dela, eu faço tudo que ela gosta. Há muito mais da minha mãe naqueles atores desconhecidos da peça que eu vi ontem, naquele banho de cachoeira e naquela música que eu tanto ouço do que num pozinho acinzentado com seu DNA. Não vou carregar para cima e para baixo um saquinho de cinzas. Minha mãe é vermelha, laranja, azul, verde, não cinza. Ô corzinha mais chocha esse cinza.
A percepção da morte eminente é um tremendo exercício de desapego. E põe “tremendo” nisso, põe choro, põe desespero, põe indignação. Minha mãe passou por tudo isso e morreu tranquila, consciente de que viveu o que tinha para viver, e o melhor, viveu bem. Por isso hoje eu dou continuidade a esse desafio diário de me desapegar. O que eu preciso dela está em mim, e ninguém pode tirar para usar como suvenir.
Sexta feira eu farei uma bela homenagem a ela: um lindo passeio de barco com seus familiares e amigos. Sairemos do Marina da Glória rumo as Ilhas Cagarras, onde daremos um mergulho refrescante e lançaremos suas cinzas ao mar, feito pirlinpimpim. As cinzas cinzentas vão ficar azul da cor do mar. Azul da liberdade e da paz, do jeito que a minha mãe gosta.
Eu também decidi doar seus figurinos de teatro. Não para me livrar deles, como pensam os apegados, mas sim porque não vejo razão em mantê-los mofando no guarda-roupa. Tenho certeza que a minha mãe preferiria mil vezes de vê-los no corpo de outras atrizes, no palco. Aquela peruca loura dos tempos de quimio também irá parar na cabeça de muitas. E que façam bom uso! E que fiquem lindas como a minha mãe ficou ao usá-las (não tão lindas, porque isso será impossível).
Quem sabe um dia eu não assisto a uma peça na qual a atriz use a tal peruca? Será mera coincidência? Para os incrédulos apegados sim, mas não para Isadora Libório. Minha mãe estará ali -junto com meu avô- na plateia, no palco, nos atores e naquela filha emocionada no assento I-17. Raquel estará em todos os lugares, mesmo que em lugar nenhum, pois ela é um estado de espírito, e quando a tristeza passar e virar só saudade, eu vou subir num palco e dizer: “Hoje eu estou tão Raquel!!”.