terça-feira, 17 de abril de 2012

O eterno retorno

Lembro-me do dia em que percebi que meus filhos não teriam avó. Minha mãe ainda não havia morrido, mas sabíamos que era uma questão de tempo.
         Cheguei ao psicólogo forjando um semblante calmo e sustentando uma força que eu não tinha. Eu chorava por dentro. Sabe aquele choro de quem busca a cumplicidade e o acalanto materno, mas (por quê?) não encontra ninguém apara abraçar?
- Minha mãe seria uma avó tão maravilhosa! A melhor de todas: alegre, divertida, amiga. Não é justo que eles não tenham a oportunidade de conhecê-la. – disse; minha fortaleza ruindo como um castelo de cartas.
Sônia pensou um instante e depois me perguntou se eu sentia falta do meu avô, referindo-se ao pai da minha mãe, que morrera seis anos antes de eu nascer.
-Falta não é a palavra certa porque eu nunca o conheci. Eu sinto curiosidade de saber como ele era.
-E como você acha que ele era?
-Minha mãe sempre o descrevia como inteligente, espontâneo e divertido. Ele era um apreciador das artes, adorava cantar e dançar. Estava sempre falando besteira. Era autodidata em italiano e francês, fez faculdade de arquitetura, jornalismo e letras. Estava sempre lendo um livro...
Sônia me ouviu atentamente e pousou o olhar sobre o livro que eu trazia comigo: Demian, de Hermann Hesse; depois observou minha roupa: uma calça legging de quem acabara de voltar da aula de dança. Abriu um sorriso e disse:
-Olhe quantas dessas características estão presentes em você!
Ela deixou que eu maturasse o que acabara de ouvir e, depois de alguns segundos, continuou:
-Há coisas que a ciência não explica, aliás, a maioria das coisas. Eu acredito que há um DNA emocional, que é o responsável por termos a personalidade ou características psicológicas iguais a de parentes que nem chegamos a conhecer. No fundo, nada se perde.
Olhei para o livro ao meu lado e ri como se tudo fizesse sentido.
-Sabia que Hermann Hesse era o escritor favorito do meu avô?
E ela sorriu como se já soubesse.
-De todos os autores que li, Hesse também é o meu favorito. A capa de “Demian” – um pássaro saindo de um rosto de medusa - se insinuou para mim em um velho sebo e decidi levar. Assim, por acaso. Outro dia minha avó o viu sobre minha cama e contou que meu avô o carregava para cima e para baixo, feito bíblia, assim como eu faço hoje.

Foi nesse momento que eu compreendi a grande oportunidade que meus futuros filhos teriam: a de eternizar minha mãe dentro deles, de vivê-la em seu âmago e difundir sua essência sobre a Terra. Eu vi o mais velho (minha mãe já disse que será um menino) lendo Gabriel Garcia Marques sem saber que  seu tio se chama Gabriel em homenagem ao autor, que era o favorito da sua avó. Depois vislumbrei a filha mulher que eu talvez tenha fazendo aulas de teatro, cantando no chuveiro e estampando no rosto aquele sorrisão lindo de quem saboreia a vida com gosto.
Eternizar minha mãe em mim virou também o meu exercício diário: viajei para um mosteiro budista, pesquisei sobre astrologia e filosofia oriental, voltei às aulas de teatro e dança e me aproximei do irmão, Gabriel. 
Hoje, quatro meses depois do dia que mudou tudo, abro as primeiras páginas de Sidarta, também do Hesse. O livro cheira a novo, mas me transporta para fora dos três tempos. Estou junto ao meu avô, que amava minha mãe e Hesse; junto à minha mãe, que amava meu avô e o budismo e junto a mim mesma, como há tempos não me sentia. 
O ciclo se renova. Nada se perde.