segunda-feira, 18 de junho de 2012

Perdoar


16/12/2011 (o texto é antigo, mas eu só tive coragem de postar agora...)

Ontem ao acordar, corri para conferir o ranking da PUC, que havia sido postado de madrugada. Liguei o computador, pluguei os cabos na internet, abri o navegador, digitei o link do site, minha senha e meu número de inscrição. De dedos cruzados, vi uma página com meus dados surgir na tela. Descendo mais um pouco a barra de rolamento, espanto: minha nota vinha ao lado da frase: Primeiro Lugar. Nunca duas palavrinhas ficaram tão bem juntas.
Não consegui conter a alegria. Como assim primeiro lugar? Como não havia ninguém melhor do que eu fazendo a prova? Eu consegui uma bolsa integral na melhor e mais cara faculdade particular do Rio de Janeiro??!! EU CONSEGUI UMA BOLSA INTEGRAL NA MELHOR E MAIS CARA FACULDADE PARTICULAR DO RIO DE JANEIRO!!!
Primeiro impulso (tenho que me acostumar com a palavra “primeiro” na minha vida): Contar para a minha mãe.
Sonho: minha mãe está de pé, colocando a mesa do café da manhã. Ela olha para mim e logo percebe o que me trouxe ali. “Eu sabia que você conseguiria!!”, ela diz, enquanto me dá um abraço apertado. Talvez atraídos pelo cheiro de pão fresquinho, talvez por pressentirem a boa notícia no ar, minha avó e meu irmão juntam-se a nós e todos comemoramos.
Realidade: Chego na sala e minha mãe está deitada no sofá, com cara de dor. Ela mal consegue respirar com sua máquina de oxigênio devido aos tumores que comprimem seus órgãos. Uma tristeza enorme toma conta de mim. Mas no coração onde cabe dor, cabe também alegria. “Não posso menosprezar a minha conquista!” – penso.
-Mãe, adivinha quem tirou 1º lugar para geografia na PUC...– dou um tempo para ela computar a informação... – EU!!!
Ela leva alguns segundos para absorver o que acabara de ouvir, depois abre um sorrisão e seus olhos se enchem de lágrimas. As lágrimas descem em cascata. A cascata vem seguida de um soluço engasgadode quem quase não respira. Ela estava engasgada de verdade!
Minha avó veio correndo. “O QUE HOUVE, MEU DEUS?! O QUE VOCÊ FEZ COM A SUA MÃE?!”
-Nada, vó, eu só avisei que EU TIREI 1º LUGAR NA PUC!– olhei para ela, esperando os parabéns. Mas ao invés de um abraço apertado e congratulações, eu recebi uma baita bronca:
                -Como é que você avisa uma coisa dessas para a sua mãe? Não sabe que ela não pode ter emoções fortes? Olha só como ela está agora! – nós duas a olhamos. Estava vermelha de choro e falta de ar – Calma, minha filha, não se desespere! – e, olhando para mim - Faça alguma coisa! Vá buscar um copo d’água!
                Não era exatamente essa reação que eu esperava...

É certo que eu me sinta feliz pelo meu resultado mesmo com a minha mãe doente? Eu sou insensível? Ah... Não posso chorar o tempo todo. Alguma alegria eu preciso ter! É justo SIM que eu comemore a minha conquista! Afinal, ela reflete uma vida escolar inteira de dedicação e comprometimento. Agora eu não posso querer compartilhar essa boa notícia com a minha mãe, pessoa que sempre me ajudou e apoiou? Negativo. O mérito é dela também.

Minha avó me olhou como quem diz: “você vai ficar aí parada?”

Foi a vez das lágrimas brotarem dos meus olhos e escorrerem pelo meu rosto. Mas se nem a felicidade eu posso compartilhar, quanto mais a tristeza. Achei melhor sair do cômodo antes que percebessem. Fui ao banheiro, liguei o chuveiro e deixei as lágrimas se misturarem ao jato d’água quente.
O banho me animou um pouco, mas não o suficiente para eu esquecer a mágoa do meu coração. Passei a tarde para baixo. Que merda de avó é essa que nem sabe parabenizar a neta? E pior: do que adianta um 1º lugar se eu sou impotente diante do que está acontecendo com a minha mãe?Eu superestimo todo mundo. Minha avó não é a Dona Benta, e sim uma velha insensível e paranoica. E eu sou só uma garota que se acha demais por ter feito vestibular com pessoas mais burras que ela.
Minha mãe está doente e eu quis roubar a atenção para mim. Eu tenho nojo de mim.
Minha mãe está doente e eu quis roubar a atenção para mim. Eu tenho nojo de mim.
Minha mãe está doente e eu quis roubar a atenção para mim. Eu tenho nojo de mim.
Minha mãe está doente e eu quis roubar a atenção para mim. Eu tenho nojo de mim.
Minha mãe está doente e eu quis roubar a atenção para mim. Eu tenho nojo de mim.
Minha mãe está doente e eu quis roubar a atenção para mim. Eu tenho nojo de mim.
Minha mãe está doente e eu quis roubar a atenção para mim. Eu tenho nojo de mim.
Minha mãe está doente e eu quis roubar a atenção para mim. Eu tenho nojo de mim.
Minha mãe está doente e eu quis roubar a atenção para mim. Eu tenho nojo de mim.
Minha mãe está doente e eu quis roubar a atenção para mim. Eu tenho nojo de mim.

Depois do banho, ainda me sentindo culpada, fui para o meu quarto, me deitei e esperei o sono vir, mas o aparelho de oxigênio da minha mãe soava como um helicóptero na sala, espantando qualquer perspectiva de soneca.
Eu tirei 1º lugar na faculdade e não tenho ninguém para comemorar comigo. Estou sozinha no mundo.
De repente, ouço a voz embargada da minha mãe me chamar. Vou até a sala. Recuperada do susto, ela me recebe de braços abertos e diz “estou muito orgulhosa de você”. Foi tão maravilhoso ouvir aquilo que toda a culpa foi embora e eu chorei lágrimas de felicidade, as primeiras em muito tempo. Mamãe me fez ligar para o meu pai, contar a notícia e ainda marcar um jantar de comemoração, ao qual ela não poderia estar presente fisicamente, mas prometeu estar de coração e pensamento.
                Ao jantar foram meu pai, meu irmão, meus padrinhos e a filha deles, uma grande amiga. Minha avó não quis ir, mas essa altura eu nem ligava mais. Comemos e brindamos pela felicidade e saúde, as únicas coisas que importam de verdade. Voltei para casa leve e realizada.

Na manhã seguinte, ouvi minha avó contar, ao telefone, que estava orgulhosa de mim por eu ter ido bem no vestibular. Quem diria! E eu que achei que ela não estava nem aí! Depois de terminar a conversa ela desligou o telefone e passou por mim, sem me olhar nem dizer uma palavra. Não guardei rancor por isso. Foi suficiente saber que ela tinha prestado atenção à notícia do primeiro lugar e que estava feliz por mim.
Nem sempre as pessoas conseguem manifestar seus sentimentos, o que não quer dizer que elas não os sintam. Minha avó é desse tipo, não parabeniza nem deixar transparecer que está orgulhosa, mas no fundo eu sei que ela está,e isso me basta. Estou tranquila.
Mamãe sempre se queixa de nunca ter recebido carinho nem ouvido um “eu te amo” da mãe dela. Eu não sei o que é isso, tenho a mãe mais carinhosa do mundo. Deve ser mesmo muito ruim não ter um colo, um beijo, um abraço para acalentar. Mas, ao mesmo tempo, entendo que a vovó tenha repetido para os filhos a criação que recebeu dos pais (uma dona de casa e um coronel da marinha, ambos filhos de imigrantes portugueses), que também não diziam “eu te amo”, embora amassem. Por isso ela não dá carinho em forma de colo, beijo ou abraço, e sim garantindo que nada material falte em casa.
O amor está nas compras do supermercado, nas horas de sono perdidas, no jeito hipocondríaco de ser, na preocupação com o casaco, o horário, a alimentação. Não fosse seu amor, ela não teria se mudado aqui para casa paradedicar-se a filha. Ela pode estar longe de ser a avó mais carinhosa do mundo, mas isso não significa que ela não ame a gente. Eu sei que ela ama. Eu a amo também.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Estrela (parte 1)


Ânima

Essa noite, sonhei que conversávamos sobre música e você me dizia que adorava a canção “Estrela do Mar”, da Dalva de Oliveira. Dentro do sonho, eu me lembrava da minha mãe cantando essa mesma música numa peça de teatro chamada “Todas as noites de todos os dias”. Então eu abri os braços para mostrar como ela fazia e, de repente, o quarto onde estávamos se transformava em um enorme palco. E, quando me dei conta, já não era eu quem estava em mim: eu era uma nuvem etérea pairando no ar, enquanto meu corpo, no centro do anfiteatro, era animado por outra alma.
Tive medo. Quem me deixou sair?
Meu primeiro impulso ao perceber que estava fora de mim foi tentar recuperar meu corpo. Mas aí a voz que me habitava começou a cantar...
“Um pequenino grão de areia,
Que era um pobre sonhador,
Olhou para o céu viu uma estrela,
Imaginou coisas de amor (...)”
Só então reconheci aquela voz doce, tão familiar. Era minha mãe quem, sob um enorme holofote, cantava em meu corpo, enquanto minha alma a observava, livre da matéria, onipresente. A saudade de ouvir sua voz foi maior do que o medo e a deixei manifestar-se em mim.
“Passaram anos, muitos anos,
Ela no céu ele no mar,
Dizem que nunca o pobrezinho
Pôde com ela encontrar(...)”
Minha mãe sorriu em mim e, de braços abertos como se quisesse abarcar o mundo, voltou a cantar:
“Se houve ou se não houve
Alguma coisa entre eles dois
Ninguém soube até hoje explicar
O que é de verdade é que depois, muito depois,
Apareceu uma estrela no mar”
Ao término da música, como uma névoa perolada, minha mãe saiu de mim, e eu experimentei a estranha sensação de voltar ao corpo. O palco se desfez e eu acordei num sobressalto. Eu suava frio, embora sentisse meu corpo queimar por dentro, e não tinha certeza de estar totalmente de volta a mim.
“Vivi uma experiência extracorpórea! Como isso pôde acontecer?”
Muito assustada e com muito medo de sair de mim de novo e não conseguir mais voltar, permaneci deitada, de olhos bem abertos por minutos que me pareceram a eternidade. Aos poucos fui me acalmando e interpretei aquilo tudo como uma tentativa da minha mãe de me mandar alguma mensagem.
“Morte é transcendência”, eu pensei, “é libertar-se da matéria”. Se cantar, atuar e sentir estão condicionados à forma física, usar o meu corpo foi a maneira que minha mãe encontrou de retornar ao mundo sensível para me ensinar alguma coisa (que só poderia ser dita através da matéria). Mas o que seria?
Tentei raciocinar por um tempo, mas logo fui vencida pelo cansaço e adormeci. Só acordei de manhã, já atrasada para a faculdade. Passei o dia todo com o sonho na cabeça, mas quanto mais tentava entender seu sentido, menos compreendia aquilo tudo. Tentei me convencer de que tinha sido só uma fantasia maluca, mas não acreditei em mim mesma. Só de tarde, quando fui dar uma volta para espairecer, as respostas vieram.
Zanzando de bicicleta a mil por hora, ouvi uma voz me chamar. Freei a bike e vi Eveline, grande amiga e professora de canto da minha mãe.
-Pensei muito em você ontem à noite! – ela disse- Gostaria tanto que você fizesse uma aula de canto comigo, sem compromisso, seria tão bom te ouvir cantar pelo menos uma vez... Sua mãe sempre disse que você tinha uma voz linda... Significaria muito para mim, e sei que para ela também.
E tem gente que acredita em coincidências! Marcamos a aula para o dia seguinte e, adivinhem que música eu escolhi para cantar? “Estrela do Mar”, da Dalva de Oliveira. Eveline, sentada no mesmo piano, tocou as mesmas notas enquanto eu cantava na mesma sala que, anos antes, minha mãe ensaiara aquela mesma canção. Todas as noites de todos os dias...