Ânima
Essa noite, sonhei
que conversávamos sobre música e você me dizia que adorava a canção “Estrela do
Mar”, da Dalva de Oliveira. Dentro do sonho, eu me lembrava da minha mãe
cantando essa mesma música numa peça de teatro chamada “Todas as noites de
todos os dias”. Então eu abri os braços para mostrar como ela fazia e, de
repente, o quarto onde estávamos se transformava em um enorme palco. E, quando
me dei conta, já não era eu quem estava em mim: eu era uma nuvem etérea pairando no ar, enquanto meu corpo, no centro do anfiteatro, era animado por outra alma.
Tive medo. Quem
me deixou sair?
Meu primeiro
impulso ao perceber que estava fora de mim foi tentar recuperar meu corpo. Mas
aí a voz que me habitava começou a cantar...
“Um pequenino
grão de areia,
Que era um
pobre sonhador,
Olhou para o
céu viu uma estrela,
Imaginou
coisas de amor (...)”
Só então
reconheci aquela voz doce, tão familiar. Era minha mãe quem, sob um enorme
holofote, cantava em meu corpo, enquanto minha alma a observava, livre da
matéria, onipresente. A saudade de ouvir sua voz foi maior do que o medo e a deixei manifestar-se em mim.
“Passaram
anos, muitos anos,
Ela no céu ele
no mar,
Dizem que
nunca o pobrezinho
Pôde com ela
encontrar(...)”
Minha mãe
sorriu em mim e, de braços abertos como se quisesse abarcar o mundo, voltou a
cantar:
“Se houve ou se
não houve
Alguma coisa
entre eles dois
Ninguém soube
até hoje explicar
O que é de
verdade é que depois, muito depois,
Apareceu uma
estrela no mar”
Ao término da
música, como uma névoa perolada, minha mãe saiu de mim, e eu experimentei a
estranha sensação de voltar ao corpo. O palco se desfez e eu acordei num
sobressalto. Eu suava frio, embora sentisse meu corpo queimar por dentro, e não
tinha certeza de estar totalmente de volta a mim.
“Vivi uma
experiência extracorpórea! Como isso pôde acontecer?”
Muito
assustada e com muito medo de sair de mim de novo e não conseguir mais voltar, permaneci
deitada, de olhos bem abertos por minutos que me pareceram a eternidade. Aos
poucos fui me acalmando e interpretei aquilo tudo como uma tentativa da minha
mãe de me mandar alguma mensagem.
“Morte é transcendência”,
eu pensei, “é libertar-se da matéria”. Se cantar, atuar e sentir estão
condicionados à forma física, usar o meu corpo foi a maneira que minha mãe
encontrou de retornar ao mundo sensível para me ensinar alguma coisa (que só
poderia ser dita através da matéria). Mas o que seria?
Tentei
raciocinar por um tempo, mas logo fui vencida pelo cansaço e adormeci. Só acordei
de manhã, já atrasada para a faculdade. Passei o dia todo com o sonho na cabeça, mas quanto mais tentava entender seu sentido, menos compreendia aquilo tudo. Tentei me convencer de que tinha sido só
uma fantasia maluca, mas não acreditei em mim mesma. Só de tarde, quando fui
dar uma volta para espairecer, as respostas vieram.
Zanzando de
bicicleta a mil por hora, ouvi uma voz me chamar. Freei a bike e vi Eveline, grande
amiga e professora de canto da minha mãe.
-Pensei muito
em você ontem à noite! – ela disse- Gostaria tanto que você fizesse uma aula de
canto comigo, sem compromisso, seria tão bom te ouvir cantar pelo menos uma vez...
Sua mãe sempre disse que você tinha uma voz linda... Significaria muito para
mim, e sei que para ela também.
E tem gente
que acredita em coincidências! Marcamos a aula para o dia seguinte e, adivinhem
que música eu escolhi para cantar? “Estrela do Mar”, da Dalva de Oliveira.
Eveline, sentada no mesmo piano, tocou as mesmas notas enquanto eu cantava na
mesma sala que, anos antes, minha mãe ensaiara aquela mesma canção. Todas as
noites de todos os dias...
Teus olhos deixam a vida muito bonita.
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