quarta-feira, 6 de junho de 2012

Estrela (parte 1)


Ânima

Essa noite, sonhei que conversávamos sobre música e você me dizia que adorava a canção “Estrela do Mar”, da Dalva de Oliveira. Dentro do sonho, eu me lembrava da minha mãe cantando essa mesma música numa peça de teatro chamada “Todas as noites de todos os dias”. Então eu abri os braços para mostrar como ela fazia e, de repente, o quarto onde estávamos se transformava em um enorme palco. E, quando me dei conta, já não era eu quem estava em mim: eu era uma nuvem etérea pairando no ar, enquanto meu corpo, no centro do anfiteatro, era animado por outra alma.
Tive medo. Quem me deixou sair?
Meu primeiro impulso ao perceber que estava fora de mim foi tentar recuperar meu corpo. Mas aí a voz que me habitava começou a cantar...
“Um pequenino grão de areia,
Que era um pobre sonhador,
Olhou para o céu viu uma estrela,
Imaginou coisas de amor (...)”
Só então reconheci aquela voz doce, tão familiar. Era minha mãe quem, sob um enorme holofote, cantava em meu corpo, enquanto minha alma a observava, livre da matéria, onipresente. A saudade de ouvir sua voz foi maior do que o medo e a deixei manifestar-se em mim.
“Passaram anos, muitos anos,
Ela no céu ele no mar,
Dizem que nunca o pobrezinho
Pôde com ela encontrar(...)”
Minha mãe sorriu em mim e, de braços abertos como se quisesse abarcar o mundo, voltou a cantar:
“Se houve ou se não houve
Alguma coisa entre eles dois
Ninguém soube até hoje explicar
O que é de verdade é que depois, muito depois,
Apareceu uma estrela no mar”
Ao término da música, como uma névoa perolada, minha mãe saiu de mim, e eu experimentei a estranha sensação de voltar ao corpo. O palco se desfez e eu acordei num sobressalto. Eu suava frio, embora sentisse meu corpo queimar por dentro, e não tinha certeza de estar totalmente de volta a mim.
“Vivi uma experiência extracorpórea! Como isso pôde acontecer?”
Muito assustada e com muito medo de sair de mim de novo e não conseguir mais voltar, permaneci deitada, de olhos bem abertos por minutos que me pareceram a eternidade. Aos poucos fui me acalmando e interpretei aquilo tudo como uma tentativa da minha mãe de me mandar alguma mensagem.
“Morte é transcendência”, eu pensei, “é libertar-se da matéria”. Se cantar, atuar e sentir estão condicionados à forma física, usar o meu corpo foi a maneira que minha mãe encontrou de retornar ao mundo sensível para me ensinar alguma coisa (que só poderia ser dita através da matéria). Mas o que seria?
Tentei raciocinar por um tempo, mas logo fui vencida pelo cansaço e adormeci. Só acordei de manhã, já atrasada para a faculdade. Passei o dia todo com o sonho na cabeça, mas quanto mais tentava entender seu sentido, menos compreendia aquilo tudo. Tentei me convencer de que tinha sido só uma fantasia maluca, mas não acreditei em mim mesma. Só de tarde, quando fui dar uma volta para espairecer, as respostas vieram.
Zanzando de bicicleta a mil por hora, ouvi uma voz me chamar. Freei a bike e vi Eveline, grande amiga e professora de canto da minha mãe.
-Pensei muito em você ontem à noite! – ela disse- Gostaria tanto que você fizesse uma aula de canto comigo, sem compromisso, seria tão bom te ouvir cantar pelo menos uma vez... Sua mãe sempre disse que você tinha uma voz linda... Significaria muito para mim, e sei que para ela também.
E tem gente que acredita em coincidências! Marcamos a aula para o dia seguinte e, adivinhem que música eu escolhi para cantar? “Estrela do Mar”, da Dalva de Oliveira. Eveline, sentada no mesmo piano, tocou as mesmas notas enquanto eu cantava na mesma sala que, anos antes, minha mãe ensaiara aquela mesma canção. Todas as noites de todos os dias...

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